A Topografia Oculta do Cemitério
por Michael Nefer
O Reino dos Mortos possui dentro de si um microcosmo com seus próprios pontos de poder, que serão aqui apresentados na forma de locais espirituais. Cada um desses locais e seus caminhos nos levam reinos ocultos de igual poder e maravilhamento para aqueles que se atrevem a buscá-los.
O Portal do Templo Sepulcral
Na topografia oculta do reino dos mortos você se deparará com o primeiro caminho logo ao chegar: a porta de entrada. Toda porta é uma encruzilhada, e certamente a porta de um cemitério é para a bruxa um verdadeiro Portal. É ensinado pelos espíritos do caminho que toda passagem, porta ou portal é guardado por um espírito guardião que pode se manifestar tanto em formas femininas, masculinas, andrógenas, zoomórficas e celestiais.
A porta de entrada de um cemitério é guardada pelo Pai das Oportunidades e por sua consorte, responsáveis pelo ir e vir entre os mundos. Como psicopompos assistem no nascimento e morte das pessoas, o que os tornam ligados a hospitais, maternidades e necrotérios, além das portas e passagens. Quando adentramos no cemitério nossa primeira oferenda é para eles. Para que nossos caminhos sejam tranquilos, para que nosso trabalho realizado e para não encontrarmos empecilhos no caminho, é a eles que recorremos.
Nos tempos antigos divindades como Hermes, senhor dos caminhos, um dos poucos com liberdade para andar entre os mundos, e Janus, o deus de suas faces, guardavam junto com os espíritos as portas de entrada dos tempos e das necrópoles. Na crença brasileira Exu é quem guarda as portas e passagens, bem como as encruzilhadas. É dito que aqueles que procuram seus favores costumam vê-los acontecer muito rapidamente. Outros relatam que eles podem te dar algo só para rir de você. A natureza dupla desse caminho se revela no poder de se estar tanto dentro quanto fora do mundo, tanto acima quanto abaixo de toda situação.
Sob tutela deles se encontram os sátiros e ninfas que favorecem mudanças, trazem oportunidades e guiam em nossas jornada com uma visão superior dos eventos da vida. Em aspecto contrário, podem atuar trazendo inconstância, falta de perspectivas e oportunidades, sensação de estar travado e paralisia para com a vida.
O Vale dos Mortos
Continuando nosso estudo topográfico oculto, após entrar e começar a caminhar, você se deparará com o Reino em si, o vale de covas e mausoléus. Arquitetado para dar livre acesso às almas ao céu, o vale dos mortos é um local de poder inigualável e feroz. Nas tradições desta terra abençoada encontramos aqui Rosa Caveira, com metade de sua face com aspecto de morte, e outra com aspecto de vida. Rosa Caveira é versadas nas artes tibetanas de xamanismo o que nos leva a deusa hindu, Kali, dançando sobre os ossos dos mortos em sua dança de destruição e regeneração.
As manifestações dos sátiros e ninfas desse reino são sempre cheias de horror e pavor, causam medo e alvoroço para se alimentar e assim se tornam de fácil manifestação para aquele que for o atormentado, causado mais pânico e pavor do que antes. Os ritos de nosso fé buscam nos dar a ferocidade e coragem suficiente para fazê-los mudarem para formas mais concretas e realizarem obras para nós.
Algumas pessoas erroneamente os consideram de difícil trato por lidarem com a carniça espiritual dos que partiram. Na verdade, eles são os responsáveis pela transmutação e renascimento de todos os que partem deste mundo, e por lidarem com todo o peso da memória daqueles que partem, atraem consigo muitos espíritos que não se desapegaram de suas condições humanas anteriores. Eles são guardados e guiados pela Mãe Cadáver e o Pai Esqueleto, senhor e senhora dos campos abertos no cemitério.
Quando se trabalha com eles é comum sentir “frio na espinha” - uma vez que eles agem sobre os ossos. Causam dores nos ossos, estalos, doenças incuráveis e profundas. Por outro lado, sãos os melhores estrategistas e são os mais eficientes em todo tipo de trabalho.
O Velório ou a Capela
O Velório é um local de imensa tristeza, é onde todas as mágoas e dores se juntam à orações e bons desejos, um local de natureza dupla e ambivalente. O velório é assim considerado como uma porta para o rio do esquecimento.
Muitas visões podem ser trazidas aqui, numa delas, na mais escura noite, caminhávamos pelas sombras de densas árvores quando uma neblina densa nos retirou de nosso curso até um local cheio de moedas e muita água ao redor. A neblina escondia uma figura esquelética num barco ao longe, caminhávamos pela beira do rio estige, ali, as moedas eram dadas ao barqueiro e jamais soubemos o que ele esconde do outro lado.
Outra visão nos foi dada, nela caminhávamos pela pela necrópoles e avistamos um coruja que rapidamente tomou a forma de uma mulher-coruja e voou para longe entre as árvores. Seguimos a figura diabólica até sua casa sob a capela negra, e lá vimos as paredes caírem e uma cova abrir no meio, da cova uma voz proclamou: “eu sou a Cova sempre aberta, eu sou o Útero da criação!”.
Em ambas as visões o abismo negro ali habita, sugando tudo como num vórtice negro, trata-se do próprio coração das necrópoles. Esta é a casa das memórias e emoções, do lamento e do gemido, da risada e da dor… onde o céu é cinza e a neblina densa. Aqui mora aquela cujo nome se perdeu no tempo. Aos eleitos, o nome se dela se revelará no tempo apropriado.
Aqui a Capela d’Ela é erguida, o ventre negro naturalmente se aloja no centro desta topografia. Ainda assim, oculto em toda essa dimensão obscura está um pequeno segredo: o paraíso. Ali todas as coisas são renovadas e moldadas, o céu se torna claro, iluminado como nas noites de outono com tons de vermelho, laranja e azul - anunciando que a fornalha do Grande Pai Moldador de Almas está a trabalhar.
O Jardim de Sombras
Chamado de Jardim por ser um lugar de deleite e encantamento, o Jardim de sombras é um lugar de poder onde os espíritos se encontram para comungar e realizar ritos de cópula astral. Aqui jazem Súcubos e Íncubos que usam este local como uma porta entre os mundos.
Por sua natureza o Jardim está oculto da vista humana comum. Encontrar o Jardim das Sombras é uma tarefa árdua. Por experiência prática, o sentir o perfume das flores e terra sempre foram indicativos desse paraíso. Uma vez dentro do Jardim ninguém poderá ver você, pois a natureza oculta dele faz com que as pessoas o desprezem, evitem e não olhem para ele, como se um véu pousasse sobre aquele lugar.
Aqui reinam espíritos lascivos e luxuriosos. Sob tutela da Senhora do Deleite, e de seu consorte luxurioso, eles dançam e copulam na espiral sabática. São os mais hábeis com conselhos, capazes de criar e mudar pensamentos, atuam sobre os desejos humanos causando ondas de intenso desejo ou frieza.
Através deles aprendemos a Arte do Encantamento e da Sedução, o uso das palavras e gestos que são capazes de criar e destruir mundo. Os romanos celebraram esse poder pelo nome de Libitina, deusa da morte e sexo, cujo nome é a origem da palavra líbido. Diz a tradição que é ela quem sopra o vento que toca as árvores e as faz cantar.
Alguns espíritos que costumam se associar esse campo de deleite costuma se nomear com nomes como Jezebel, Salomé, Padilha, Aninha, Maria Madalena, Margherita, Elisabete e Cleópatra. Apesar de não serem realmente essas figuras históricas, o esquecimento do nome, bem como da memória do que se era, costuma se mesclar ao coletivo espiritual, e as histórias de vida deles não são em si da figura histórica, mas histórias do próprio morto antes do esquecimento.
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O Cruzeiro das Almas
O Cruzeiro das Almas é um grandioso farol para todos aqueles que estão perdidos na noite da alma. Neste reino Lucifera faz seu trono, ao lado de seu consorte Lucífero. Mas, onde existe Luz, existe também escuridão.
Neste reino o sol se põe ao alto, arde forte sobre nossas cabeças, os urubus observam do alto, aguardam o desígnio deles. Raios de luz e sombra brincam entre as árvores, fazem sua dança oculta sobre as covas, revelando sombras ancestrais. Nada aqui permanece o mesmo por muito tempo. A sombra quase hipnótica muda constantemente, um ato tão pequeno que o olho comum não percebe. Assim é a natureza inconstante dos espíritos que aqui habitam.
Neste local que é um portal não há música, mas há um grande murmúrio constante. Aqui somos convidados a subir ou descer na corrente do tempo e espaço, nossas almas podem aqui se deslocar entre os muitos pontos no universo. Como um lugar de Elevação o Cruzeiro é o elo divino, onde as velas de luz são acesas para a escuridão dos que se foram, aqui firmamos nossa proteção. Como um lugar de obscurecimento, aqui todas as coisas são amarradas, todas as vinganças efetivadas e é também aqui onde a justiça é feita.
Os espíritos do ar costumam fazer seu lar no Cruzeiro, as corujas e urubus se aninham. Grande parte, salvo os enganadores, são muito sábios e cultos, sabem do futuro e são detentores dos oráculos divinos.
O Limiar de Ossos
Há um grande ossário que geralmente está fisicamente ligado ao muro que circunda o cemitério. Nesse muro de ossos que limita domínio dos mortos e dos vivos, os ossos dos ancestrais formam uma barreira espiritual contra a saída daqueles poderes nocivos a nossa humanidade. Em histórias como a de Baba Yaga e Vasilisa essa antiga tradição é trazida a tona em nossas arenas mentais. Os druidas de tempos antigos utilizaram do mesmo princípio ao colocar cabeças decepadas de seus inimigos ao redor dos templos. No começo os cemitérios costumam ter somente uma cerca ao redor da cova, para prevenir o morto de vagar pela terra, mas hoje vemos cemitérios inteiros rodeados com ossários. Esse não é em si um reino, mas possui seus guardiões na figura dos amados Mortos Ancestrais.